Um património esquecido e inexplorado

        

           O Almanaque Luso-Brasileiro de Lembranças saiu regularmente durante 81 anos (1851-1932). Fundado pela família Castilho irradiou em todo o mundo lusógrafo, atinjindo tiragens importantes, até 24 000 por ano. Além da agenda, recebia e publicava textos mandados do continente (Portugal) da Madeira e dos Açores, de todo o Brasil e das colónias portuguesas da África e da Ásia. Nesta produção ultra-marina, Cabo-Verde levou a Palma.

 

         Neste primeiro volume dedicado à presença cabo-verdiana no Almanaque, republicamos, modernizando a ortografia, os textos dos anos 1851-1900, 390 documentos escritos de quase duas centenas de autores. Abrangem todos os sectores: poesia e prosa (estreias de Guilherme Dantas, Eugénio Tavares, Januário Leite), reportagens, evocações da agricultura, pesca, usos e costumes, geografia, história e também, muito ao gosto da época, enigmas, charadas , logogrifos. Todas as ilhas estão presentes.

 

        Trata-se de um património esquecido, inexplorado, resultado duma pesquisa universitária da nossa equipa PCLL (Pédagogie, Cultures et Littératures Lusographes. Rennes, França) ilustração de um Cabo Verde activo com uma população impressionante que testemunha a maturidade cultural do arquipélago já no século XIX.

 

 

 

Preâmbulo

           O século XIX foi o século da imprensa e, do mesmo, o do teatro e do romance, embora não seja este o nosso assunto. No século XIX, existiram centenas de almanaques, de publicações periódicas anuais, milhares de quotidianos ou semanários no mundo inteiro e, em especial e muito particularmente, no ocidente europeu. Até as cidades pequenas tinham um quotidiano. Em toda a parte houve sede e vontade em comunicar. A expansão das trocas em política foi facilitada por um sensível recuo do analfabetismo e isto graças a uma rede mais consequente de escolas. É impossível calcular as tiragens dos jornais, de que a multiplicação foi um fenómeno de sociedade. O incremento da imprensa e do livro foi uma bênção para as tipografias.


      Desde o século XVII, que a imprensa e os almanaques existiam. Em Portugal citemos o Almanaque das Musas em 1793. Não se trata aqui de retraçar esta história. O século XIX foi um período fasto para este tipo de publicação, particularmente em Portugal. No Brasil, a partir de 1844, houve o célebre Almanaque Laemmert. Tirando a organização tradicional do ano religioso, os almanaques balizam e organizam o ano, marcam os dias e celebram as festas e os santos. O Almanaque de lembranças Luso-Brasileiro (1851-1932) vai ser publicado em Portugal durante mais de oitenta anos. Limitar-nos-emos no presente volume aos anos 1851-1884. O segundo volume, em preparação, reunirá os textos publicados até 1932, último ano da publicação, e aparecerão nomes muito conhecidos como Manuel Lopes …

Alguns textos:

A ilha brava

Autor: António Artiaga Souto Maior (Ilha Brava)

 

Páginas: 95-96

 

 

Esta ilha, a mais pequena do arquipélago é contudo a mais laboriosa de suas irmãs. Apenas as primeiras chuvas molham a terra, e muitas vezes antes disso, toda a ilha é semeada. Não esperdiçam um palmo de terra, as achadas, os outeiros, as encostas, as quebradas, e até nos mais elevados píncaros da serra, se nota vegetação plantada pela mão do homem. Será, dirão, porque sendo a ilha pequena e a população comparativamente grande, se vêem nessa necessidade; mas não é só por esse facto, é também porque o povo da Ilha Brava é por índole laborioso, e tanto que não se entrega só aos trabalhos do campo.

 

Como industrioso fabrica chapéus de palha, que usam a maior parte dos habitantes do arquipélago, e muitos deles são tão perfeitos que rivalizam na aparência com os do Panamá. Fabricam também cal, que é a melhor da província, e colchas de lã que são muito procuradas. Que é agricultura dil-o a quase sempre abundante colheita da ilha, o que lhe dá possibilidade de exportar cereais.

 

Além de industriosos e agrícolas, os seus habitantes são tão aptos no mar como na terra,dil-o a estatística marítima dos baleeiros americanos, que todos os anos vêm aqui tomar gente para as suas tripulações, por os habitante da Ilha Brava serem todos excelentes marinheiros.

 

1883

Uma câmara modelo

Autor: Artiaga Souto Maior (Cidade da Praia – Cabo Verde)

Página: 164

 

Há 30 ou 40 anos discutia-se num município deste arquipélago o orçamento municipal.

 

Tudo corria às mil maravilhas, sem que se tivesse apresentado a mínima observação por parte dos vereadores membros do conselho municipal, que atentos seguiam a leitura dos vários capítulos de despesa.

 

Chegou-se ao capítulo 16° que dizia assim:

Despesas com um Te-Deum .................... 25$000

 

Então um dos vereadores, sorvendo uma pitada, endireitando os óculos, e erguendo-se em atitude própria para orar, pediu palavra.

 

– Senhor Presidente, acho excessiva a verba do capítulo que acaba de ler-se, e proponho para economia da Câmara, que o Te-Deum seja feito por meio de faxinas.

 

1883


Um almoço

Autor: Guilherme da Cunha (Cabo Verde)

Página: 60

 

 

Ao meu amigo Francisco Xavier Crato

(num dia de magro)

 

 

Convido-te a almoçar, amigo Crato!

Já não quero ser triste como esquife,

nem parecer sovina.... que é patife.

Vamos já para a mesa. Salte um prato.

 

 

Conversemos primeiro com este pato,

que não há quem melhor na mesa o bife.

Venha em sangue fumado o gordo bife

inglês.... que o português é muito chato...

 

 

Salte já de presunto um grande naco!

E prova deste roxo predilecto

de todo o sacristão do grande Baco.

 


Para coroar almoço tão selecto,

queijo... café... charutos de pataco....

Mas, ai de mim!... Não passa de um soneto!...

 

1884

 


Medo que a Guiné outrora causava ao povo rude de Cabo Verde!

Autor: Gabriel Fortes (Luanda)

 

Página: 239

 

 

No ano de 1878, sendo eu soldado do glorioso batalhão de caçadores nº1 que então guarnecia aquela província, com a sede na Cidade da Praia, estando um dia de sentinela ao paiol público, se dirigiu a mim fazendo cordialmente mesuras 16 uma mulher de cor preta que orçava nos seus 50 Janeiros bem maduros, chorando amargamente.

 

Por curiosidade minha lhe perguntei o motivo que a levara a tão grande desespero. Respondeu quase sufocada que vinha à cidade despedir-se do seu filho que era também soldado do mesmo batalhão e que estava prestes a embarcar para Guiné a fim de fazer parte do destacamento então estacionado na vila de Bissau; que também trazia donativos para compra do farnel da festa fúnebre que ia ter lugar na sua casa no interior da ilha CidadeVelha pois o seu primogénito e único filho seguia para Guiné e que portanto era riscado da lista dos vivos !

 

Indignado com aquela resposta que não deixa de ter a sua graça contei o caso que tinha-se passado entre mim e a mulherzinha e por pessoas fidedignas fui informado que, no interior da ilha de Santiago de Cabo Verde, logo que qualquer embarcasse para Guiné era tido como morto e que por isso os parentes mais sanguíneos seguiam as praxes de nojo como se porventura o indivíduo que embarcara tivesse de facto falecido, isto é : durante 8 dias inclusive, manda-se celebrar duas ou três missa, sufragando a alma de quem embarcara para Guiné. Canta-se na casa do anojado a ladainhae reza-se a oração de S. Gregório com grande devoção junto a um altar forrado de crepe e sobre este um crucifixo e em redor muitas velas acesas, etc. Depois destas cerimónias servem-se as refeições, banquete para as pessoas que vão dar os pêsames e durante a refeição bebe-se desregradamente a aguardente extraída da cana sacarina e assim sucessivamente até ao final da festa.

 

A pobre mulher a que me refiro era bem digna de lástima, não tinha mais, como se disse, que um filho, era viúva. Não podia fazer isentar o seu filho das fileiras do exército e nem podia provar que o filho lhe servia de amparo porque Deus lhe tinha concedido alguns haveres. Talvez por isso fosse a origem de perder seu filho.

 

Pobre mulher!

 

O filho embarcou e ela ao despedir-se dele na ponte-cais, parecia como que suspensa do uso da razão e estava imersa em funda mágoa.

 

A velha estremeceu. Nem lágrimas vieram mitigar aquele grande sofrimento !

 

Saí pedindo a Deus que houvesse misericórdia daquele coração de mãe !

 

 

Maio de 1890

 

 

 

 

 

Agradacimentos

Ao Presidente do Instituto da Biblioteca Nacional do Livro, Dr. Joaquim Morais

à Biblioteca Nacional de Cabo Verde

à Bibliothèque du Centre Culturel Gulbenkian, Paris

à Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa

à Hemeroteca de Lisboa

aos estudantes da Universidade de Rennes 2 (França):

Laurence Boccou, Sandra Brice, Dominique Delmas, Magaly de Vitry, Christophe Fernandes, Paulin Gomis, Loïc Jousni, Elisabete Nunes, Sophie Perret, Esperança Raingeart de la Bletterie, Gaëlle Vertale, Roselyne Vignol.

 

 

Ficha técnica

Edição

Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro

 

Co-edição

Ponto & Vírgula; PCLL (Pédagogie, Culture, Littérature, Lusographes) Université de Rennes 2

 

Organizadores

Françoise e Jean-Michel Massa, Martine Guillerm

 

Preâmbulo

Jean-Michel Massa

 

Tradução

Maria Luisa Bazenga

 

Revisão

Adelino Da Mota, Ana Maria Brito

 

Grafismo

Leão Lopes e Rogério Rocha

Lab. de Artes Digitais - M_EIA

 

Impressão e acabamentos

Gráfica de Mindelo

 

 

 

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